Aquarelas

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

A HORTA


Minhas netas: Heitor Villa-Lobos foi um compositor brasileiro. Era um apaixonado pelo nosso país e resolveu pintar o Brasil com sons. Pintar com sons? É isso mesmo. Os pintores pintam com cores. A gente olha para um quadro e os olhos vêem coisas que não estão por perto, e, talvez, mesmo coisas que não existem. Cândido Portinari (sua tela Paisagem – arara, bananeira, banana, macaco –é linda!), Tarsila do Amaral, Lasar Segall, Di Cavalcanti, Alfredo Volpi são artistas que nos fazem ver coisas que nossos olhos não vêem. Os músicos, diferentes dos pintores, usam sons para pintar. A gente ouve a música e os olhos começam a ver coisas. Não acreditam? Villa-Lobos compôs uma música chamada O trenzinho do caipira. Ouvindo, a gente vê uma maria-fumaça resfolegando e apitando. Villa-Lobos pintou índios dançando, crianças brincando, serestas românticas (pergunte ao seu pai o que é ‘seresta’...). E, dentre suas músicas, uma se chama Alegria na Horta.

Alegria na horta? Isso mesmo. A horta é lugar de alegria. Tem alegria no supermercado? Tem. Mas é uma alegria diferente daquela que cresce na horta. No supermercado as verduras e legumes já vêm prontos e embrulhados em plástico. Na horta a gente vê as verduras e legumes nascendo. Verduras e legumes nascem na horta porque a gente semeou. Semear é fazer amor com a terra. Vocês conhecem aquela música do Milton Nascimento Cio da Terra. Se não conhecem, tratem de conhecer. É muito bonita. ‘Cio’ é ‘desejo sexual’. O Milton, nascido na cidade de Três Pontas, bem pertinho de onde eu nasci, Boa Esperança, sabe muito bem essas coisas sobre que estou falando. O mundo onde ele viveu menino se parecia com o mundo onde eu vivi menino. E ele, músico-poeta, tratou de colocar em sons e palavras o mistério da terra que ele viu e sentiu: terra dura e seca, cheia de pedras e pragas, querendo ser terra fértil. Vem alguém, tira os matos, arreda as pedras, ara, aduba, rega... A terra fica alegre. Cheiro de terra molhada faz bem ao corpo. Terra afofada, regada, adubada é terra pedindo: ‘Quero ficar grávida! Façam buracos! Ponham sementes dentro de mim! E eu transformarei as sementes que vocês semearem em coisas vivas, boas para ver, cheirar e comer!’

As pessoas gostam de louvar a natureza. Eu também. Natureza é beleza, é força, é vida. Os tigres se parecem com a natureza. Eles são também belos, fortes e cheios de vida. Eu os acho animais maravilhosos – longe de mim. Eu jamais entraria numa jaula com um tigre. Os tigres matam. A natureza é tigre. Ela é cruel. Duvida? Veja o filme O Náufrago, com o Tom Hanks. Esse filme é uma versão moderna do livro Robinson Crusoe, muito antigo, que eu, pessoalmente, acho muito mais interessante. Vocês já leram o Robinson Crusoe? Pois tratem de ler. Seria interessante que o seu professor, na escola, lesse esse livro para vocês. A aula seria uma delícia – e vocês acabariam por querer ter e ler o livro, para chegar logo ao fim. Imagine que você está sozinha, numa ilha deserta. Que é que você faria? Seria preciso arranjar água, comida, abrigo... Natureza-tigre eu quero contemplar – de longe! A história da humanidade pode ser contada como a luta dos homens para domar a natureza-tigre, para fazer com que o tigre fique amigo.

A horta, como o jardim, é um lugar onde a natureza ficou amiga. Para que ela fique amiga é preciso que seja amada e cuidada. A natureza só fica amiga quando os homens cuidam dela. É por isso que há alegria na horta – lugar onde a natureza é cuidada.

Cuidados: primeiro era preciso capinar a terra, tirar os matos, cavar fundo, para que a terra ficasse macia. Depois, estercar. Misturar bosta de vaca, de cavalo, de galinha, reduzidas a pó, com a terra. Aí a terra fica fértil. Que transformação fantástica: bosta, malcheirosa e feia, sendo transformada em comida! Não só em comida: em beleza – as flores são belas, os legumes são fascinantes. Em perfume: a hortelã é perfumada – e o seu perfume nada tem a ver com o cheiro da bosta que lhe deu vida. A natureza tem o poder mágico de transformar coisas em outras. Ela é a grande alquimista (pergunte ao seu professor o que é ‘alquimista’).

O que se encontrava na horta? Abóbora, abobrinha, moranga, mandioca, cará, inhame, batata, cebola, cebolinha, ervilha, vagem, alho, quiabo, couve, ora-pró-nobis, chuchu, tomatinho, agrião, espinafre, milho, pimenta, pimentões, hortelã, bucha, mangericão, salsa, almeirão...

A primeira alegria era quando o brotinho aparecia de dentro da terra: a semente germinou, está viva, quer crescer. Aí a gente vai cuidando dele como se cuida de uma criancinha, tirando os matos, regando, pondo estacas, amarrando. Chega um momento em que a planta quer dar fruto. Mas, para isso, ela tem que, primeiro, virar flor. É da flor que nasce o fruto. Quando se fala em flor a gente pensa em rosa, violeta, orquídea, cravo, gérbera – essas flores que são vendidas em floriculturas. Você já viu a flor da abóbora? A flor do quiabo? São lindas. Mas não são encontradas nem nas floriculturas e nem nos supermercados. Assim, as pessoas não sabem que os legumes tiveram uma outra beleza que não aquela que têm, quando vendidos.

Falei em tomate mas, na verdade, lá onde eu vivia não havia tomates, como esses que comemos. Havia tomatinhos vermelhos que cresciam selvagens, sem que ninguém os plantasse. Era divertido pegar os tomatinhos vermelhos e comer! E era bom pegar folhas de hortelã, esfregar na mão e cheirar. O cheiro da hortelã é tão bom que ele foi colocado nas pastas de dente. A hortelã tem o cheiro de uma manhã fresca. Toda manhã, ao escovar os dentes, sinto-me de novo na horta, cheirando hortelã. Lindos são os pés de pimenta, verdes com centenas de pequenas frutas vermelhas. Menino, eu não me atrevia a tocar nelas. Meu irmão, teimoso, embirrou de colher pimenta. Colheu. E se esqueceu de que havia colhido. Passou a mão no olho. Foi uma gritaria. E ainda dizem que ‘pimenta nos olhos dos outros é refresco’. Esse é um ditado popular malvado que revela muito sobre a alma dos seres humanos. Por que será que os homens começaram a misturar a pimenta ardida com a comida? Não sei. Só sei que acho bom. Dizem que pimenta faz mal. Não estou convencido. Os passarinhos gostam de pimenta, comem pimenta e gozam de boa saúde. E como tudo o que entra pela boca tem de sair na outra extremidade, as sementes das pimentas são espalhadas por todos os lugares. Os baianos comem pimenta, os mexicanos comem pimenta, os indianos comem pimenta – e não me parece que eles tenham menos saúde que os outros que não as comem. Em Pocinhos do Rio Verde, onde tenho um pedacinho de terra, há muitos pés de pimenta carregados de frutinhas que começam a ficar vermelhas. Na sopa, quando a pimenta é demais, o nariz começa a pingar e pode mesmo ter um ataque de espirros... É divertido!

Bom mesmo seria se você pudesse plantar uma hortinha. Visitei Berlim muitos anos atrás. Berlim está na Alemanha e foi arrasada durante a Segunda Guerra Mundial pelos bombardeios aéreos. Terminada a guerra, ficaram aqueles terrenos vazios onde antes havia casas. Notei que eles estavam cultivados. Me contaram, então, que o governo cedia aqueles terrenos para quem quisesse plantar hortas. Cada qual queria ter a horta mais bonita. Assim, ao invés de ir malhar na academia de ginástica em aparelhos metálicos para tentar manter a forma e ter saúde, muitas pessoas iam cuidar dos seus jardins. Com uma diferença: quem está malhando na academia fica olhando no relógio, para saber quanto tempo falta – pois é muito chato ficar pedalando numa bicicleta ergométrica que não sai do lugar, enquanto quem cuida da horta não quer que o tempo passe, pois é gostoso mexer com as plantas.

Se você não pode plantar um hortinha quero fazer uma sugestão: que você chame sua mãe para fazer compras na feira. É muito mais divertido que fazer compras nos supermercados. As pessoas se conhecem. Ficam amigas. E trate de abrir os olhos para ver bem! Uma amiga, cozinheira acostumada a cortar cebolas, um dia, ao prestar atenção na cebola que cortava levou um susto: nunca havia percebido que uma cebola era tão bonita: dezenas de anéis circulares, brilhantes, como se fossem um vitral de uma catedral. A cebola é tão bonita que Pablo Neruda escreveu um poema para a cebola, no qual ele se refere a ela como ‘rosa de água com suas escamas de cristal’. Não é lindo? Experimente você mesma. Olhe para os legumes e hortaliças como se fossem obras de arte. Observe as formas, as cores, a ordem dos elementos numa espiga de milho, no tomate, no pimentão, numa cabeça de alho! As hortaliças não são só para serem comidas: elas são para serem vistas!

Junto à horta crescia o pomar: laranja, mexirica, mamão, cidra, pitanga, uvaia, banana, limão vermelho, manga, jabuticaba, limão do mato, jambo, caqui... Felicidades: uma jabuticabeira florida, perfumada, milhares de abelhas zumbindo! A forma e a cor da pitanga e do caqui! Uma laranja cortada ao meio, milhares de garrafinhas transparentes onde o suco está guardado!

Houve um pintor chamado Giusepe Arcimboldo (1527-1593) que compôs rostos humanos usando cenouras, beringelas, rabanetes, tomates, cebolas, alho, uvas, azeitonas, pêssegos, figos... Não sei de onde lhe veio esta idéia e nem como ele conseguiu.. Talvez ele acreditasse que nós somos hortas e pomares onde crescem frutas, legumes e hortaliças. Quem sabe ele estava certo?

Ruben Alves

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